quinta-feira, março 22, 2012

Conhecendo a realidade


Ao chegar no aeroporto de Montréal, Celso estava lá no seu Honda Civic Hatch preto. Já senti uma enorme diferença quando comparei com a minha ultima chegada ali. Os avanços eram medidos em centímetros. A viagem transcorreu sem transtornos, mas novamente tive que ficar em uma salinha em Newark, pois ainda não tinha o visto americano.

Para obtenção do visto canadense também não tive problemas, uma vez que usei o sistema YMCA de visto de estudante. Era mais ou menos assim: o cara se inscrevia num curso de 6 meses no YMCA, mas só dava uma entrada que cobria um mês de curso. Enviávamos a carta do YMCA corroborando com a nossa história e então, ao término de um mês de curso, cancelávamos o resto do curso, alegando falta de recursos e ficava tudo bem, pois o YMCA não telefonava pra imigração pra dizer isso. Com o pagamento de um mês, tínhamos um visto de estudante de 6 meses. Promoção boa.

Evidentemente, logo essa mamata acabou, pois o YMCA começou a descobrir um alto número de pessoas fazendo isso e passou a liberar a carta somente com o pagamento do curso completo.Quando cheguei, ainda se amarrava cachorro com linguiça.

Voltando ao aeroporto. Celso perguntou se eu queria já começar a trabalhar naquele dia. Me assustei com a rapidez das coisas e também cansado, pedi pra começar no dia 06 de Setembro. Então ele me deixou na casa dele e foi pro trabalho. Dormi o dia quase todo e no outro dia comecei o meu primeiro dia de trabalho no Canadá.

Naquele final de semana, era o feriado do Labour Day e para minha sorte, Celso tinha uma ex-namorada que havia ganho 4 tickets num sorteio de um restaurante chamado La Cage Aux Sports. Esse premio dava direito de acompanhar o time de Montréal de futebol americano, os Allouettes, num jogo que iriam fazer em Hamilton, na província de Ontário.

E tudo isso de graça, o que melhorava muito a viagem. Alias, a viagem podia ser até pro inferno que eu iria estar feliz do mesmo jeito. Era a primeira vez que visitaria a província de Ontário. Então eu e Celso encontramos com a ex-namorada dele e uma amiga dela e partimos no trem pra Hamilton, junto com os jogadores dos Allouettes.   

A viagem foi otima e eu e Celso já chegamos em Hamilton completamente embriagados. Alias, todo o trem chegou embriagado, pois aquela galera do Quebec bebia com vontade. Os Allouettes ganharam o jogo contra o Tiger Cats de Hamilton e na comemoração eu fui perto do campo, onde estavam filmando e entrevistando o craque do time. Quando ele viu a camisa que eu vestia, da seleção brasileira de futebol, me chamou e veio apertar a minha mão. Tenho a foto de recordacao.

Com a vitória, os jogadores puderam relaxar e na volta vieram todos agradecer ao nosso apoio no trem. Eu juro por Deus, o time inteiro e mais o técnico vieram de um em um apertar a mão de cada passageiro do trem e agradecer pessoalmente. Eu estava maravilhado. Tudo era bom demais. Sabia que não seria assim, mas estava aproveitando o momento.

Então voltamos a dura realidade. Tinha que ganhar dinheiro de alguma forma e o que me restou no momento era a gráfica. Como não tinha autorização pra trabalhar, tudo tinha que ser under the table, isto é, recebendo em dinheiro vivo, sem declarar ao Canada Revenue Agency os meus rendimentos. E pela parte do empregador também. Mas como se dava esse processo?

Através de uma agência de empregos. Um árabe possuía uma agência de empregos e cedia funcionários pra uma grande gráfica chamada Edicible, situada na Ville de Saint-Laurent, subúrbio de Montreal.  

A fábrica pagava $12,00 por hora pra cada funcionário que essa agencia enviava pra ele. A agencia por sua vez ficava com $7,00 por hora e repassava $5,00 pra cada funcionário que não era legal pra trabalhar, em forma de dinheiro vivo, dentro de um envelope, ao término de cada duas semanas de trabalho. Com o detalhe que as duas primeiras semanas ficam com ele, como vim a descobrir que seria praxe no Canadá. Quando você termina o seu contrato ou é demitido, aí então ele devolve essas duas semanas iniciais.

Pois bem, com as 40 horas semanais que eu trabalhava na Edicible, eu colocava a fortuna de $37,50 por dia no bolso, uma vez que eles ainda tinham a pachorra de descontar a hora do almoço. Tínhamos dois lanches de 15 minutos, um na manhã e outro à tarde que eram pagos pela empresa, mas o almoço de 30 minutos eram descontados do trabalhador.

Numa matemática básica, vemos que eu levava pra casa $187,50 por semana e que se eu continuasse nesse ritmo iria ganha $9,750.00 por ano. Não existe nem uma classificação pra descrever uma pessoa que ganhe isso. Mas diria que seria algo como uns 10 metros abaixo da linha da pobreza. Bem, só passei pois eu estava morando de graça na casa de Celso e ele como ninguém conhecia o meu salário, pois ainda por cima, o árabe entregava o meu dinheiro a ele.

Celso era empregado legal da empresa, operava as máquinas e recebia um bom salário pra isso. Era até covardia comparar o meu salário ao dele e maior covardia ainda seria ele me cobrar alguma coisa referente à aluguel. Ele nunca o fez. 

Eu saía de manhã pegando carona com Celso e começava no batente às 8:00 am em ponto. Com cartão de ponto e o escambau. Eu chegava na gráfica e algum supervisor me encaminhava pra algum grupo, e eu ficava ali separando livros, panfletos, revistas, e outros produtos de gráfica para serem cortados, empacotados ou colados, dependendo do grupo em que estava. O intervalo de tempo entre às 8:00 am até as 10:15 am demorava uma eternidade. Meus Deus do céu como demorava. Durante o break time das 10:15 eu nem conseguia comer nada e ficava somente lá fora descansando.  

Voltava pro trabalho e no almoço eu comia algo bem rápido, pois como não levava comida, ficava dependente do coffee truck e como a fila era grande, quase sempre eu tinha que comer tudo em 5 minutos e já voltar pro batente, correndo e arrotando internamente.

Comecei a perceber já aí que o Canadá não era esse paraíso todo. Um sujeito que era uma espécie de Line Leader chamado Sylvain, enfiava livros na sua bolsa e todo break time em vez de comer, ia pro seu carro e colocava os produtos do furto no seu carro. Revistinhas em quadrinhos aos borbotões. E vendia pra aumentar a sua renda, fiquei sabendo logo. E olhe que ele era um dos caras mais gente boa que tinha lá.

O meu dia durava 100 horas. O tempo não passava, andava em câmara lenta e eu já estava ficando doido. Escutava o tic-tac do relógio e me doía os córneos a cada segundo. Já estava começando achar a gráfica com cara de filme de terror. Uma gente feia, alguns sem dentes, piorava o quadro com certeza. Além de ser muito longe da casa de Celso, e quando Celso fazia hora extra, eu tinha que voltar pra casa de ônibus e metrô e demorava demais.

Então um episodio marcou a minha decisão de ir embora dali o quanto antes. Eu me distraí e fui ajeitar uma dúzia de revistas na guilhotina que estavam mal colocadas, quando escutei um grito. Instintivamente, recolhi meu braços e a lâmina desceu cortando as revistas que lá estavam, mesmo mal organizadas. Se alguém não tivesse gritado, que até hoje eu não sei quem gritou, eu nem teria meus braços pra escrever isso aqui.   

(Continua...)