quinta-feira, agosto 02, 2012

A moça de Patu


A moça de Patu nunca casou. Até hoje. E naquela época também nunca havia casado. Zilene Tavares Meira tinha duas irmãs. Uma era Zileide Tavares Meira e a outra era Evandra Holanda de Oliveira. Eram as três filhas de Gonçalo Meira e de Dona Nazinha Holanda. Evandra era a minha avó Vanda e Zileide é outra tia muito querida, mas que até esse momento não havia entrado nessa historia ainda.

Como não tinha uma dicção muita boa naquela idade, eu não conseguia pronunciar o nome Zilene, então automaticamente encurtei para o som que eu conseguia pronunciar. Assim, rebatizei-a de “N” ou “Ene”. Explicando para os poucos observadores, são as três ultimas letras do nome dela. Hoje em dia tem uns primos mais novos que teimam em chamá-la de “Nena”, uma coisa tao sem lógica que eu nem tecerei comentários. Uma pessoa pode até ter dois nomes numa mesma vida, três não dá, é impossível. Será o chacal? 
    
Ene e as duas irmãs fazem parte daquele time de pessoas tao doces que ficamos até com vergonha de existir perto delas. Aquele time de pessoas que já tem o lugar garantido no céu. Já maiorzinho, minha mãe ia trabalhar e eu ficava o dia na casa dela, sempre com muita atenção, sendo alimentado com uma boa carne de sol com arroz de leite, brincando no quintal da casa dela, lá em Nova Descoberta, bem perto do cemitério.

Quando eu já podia sair sozinho de bicicleta, ia sempre lá, visitá-la e saborear do seu sorriso e de sua alegria sincera por estar me vendo por ali. Nunca, eu repito, nunca recebi um carão de Ene, de Zileide ou de Vovó Vanda. De minha parte digo que também nunca fiz por onde demais. Sempre as tive na mais alta estima e nunca admiti sequer levantar a voz para nenhuma delas. Grande parte das minhas fotos de infância tem a presença de uma das três, constantemente.

Zileide trabalhava na Datanorte, a empresa de processamentos de dados do Estado do Rio Grande do Norte, que meu pai fez parte da equipe fundadora. Trabalhou a vida inteira por lá, pelo que sei, até se aposentar. Por isso enquanto Zileide trabalhava, eu passava o dia inteiro com Ene. Daí meu contato ter sido maior com Ene. Mas Zileide também sempre foi uma figuraça.

Pensando bem agora, a coisa que eu acho que elas mais gostam de fazer na vida é sorrir. Sempre com um sorrisão estampado no rosto. Quando me encontrei com Ene agora em Salvador, pois em 2010 elas foram passar o Natal comigo, e disseram que eu estava gordo, ela disse: “Ele está parecido com Oliveira!”, despistando o comentário elegantemente. Oliveira era meu avô materno.

Lá pra meados de 2001 ou 2002, Ene teve um aneurisma cerebral e quase veio a óbito. Ficou muito mal, todos davam como fatal ou que pelo menos ia ficar com sérias sequelas. Mas eis que a sertaneja não só não morreu, como não teve sequela alguma. Mas digo que foi um dos momentos mais angustiantes que tive aqui nesse Canadá. Só lembrava do sorriso e do abraço dela.

Ah, lembrei quando ela perdia o sorriso. Quando meu bisavô Gonçalo, o pai dela, por puro sadismo, me dava um beliscão de soldado e não soltava mais, dessa vez ele rindo ao invés dela. Ria aquele riso de psicopata ao me ver pular pra um lado e pro outro de dor, preso somente pela mão forte daquele octogenário que trabalhou a vida toda no campo.

Ene chegava e acabava com a farra dele. Mas, apesar de levar os beliscões, eu era muito burro. Todo dia caia na conversa dele e chegava perto de novo, pois ele me dava os beliscões sem nem levantar da cadeira de balanço em que estava sentado. Uma coisa surreal. E no dia seguinte, ele dizia baixinho: “Vem cá!” e eu ia de novo. Ene nunca disse: “Você é burro, hein? Porque vai pra perto dele?” Ela apenas ficava passando a mão na marca que o beliscão deixava no meu braço.    

Minha bisavó Nazinha era outro doce de criatura. Comigo. Não sei com os outros. Era muito pequeno pra avaliar o relacionamento que ela tinha com os outros.  Eu gostava muito de conversar com ela. Passava horas e horas.

Bem, meu bisavô Gonçalo, o pai da moça de Patu, foi a primeira pessoa da minha família que morreu. Eu fiquei por bastante tempo triste, apesar de não dizer nada. Lembro que ele tava doente, deu uma melhorada e morreu. Acho que eu devia ter uns 12 anos de idade. Eu tinha ido visita-lo de dia de bicicleta e me disseram que ele tinha morrido. Tive que voltar sozinho de bicicleta pra casa, já de noite, com a imagem e a sensação da morte perto de mim.

Pedalei o mais rápido que podia e cheguei logo em casa. Nunca mais esqueço disso. Descobri ali que realmente as pessoas morriam. E se meu pai morresse? E se minha mãe morresse? O que eu iria fazer?

Vovó Nazinha morreu quando eu já morava no Canadá, nos anos 2000 e poucos, com quase 95 anos. Me parece que já não reconhecia ninguém e falava como se estivesse na infância. Minha Vó Vanda (Evandra) morreu quando eu já estava aqui também, no final de 2005, acho que Novembro. Quando vovó Vanda morreu, passaram-se 7 dias e nós descobrimos que minha mulher estava grávida. Minhas filhas nasceram em Junho de 2006.

Sobraram, graças a Deus, Zileide e Ene, lutando bravamente nessa vida às vezes tao difícil. Na minha mente, só quem morreu foi Vovô Gonçalo, pois o vi morto e sendo enterrado. Vovó Nazinha e Vovó Vanda eu não vi, e penso que estão sentadas agora nesse momento, cada uma em uma cadeira de balanço, dando risadas de alguma presepada feita por algum neto. Eita que privilégio da porra ter herdado alguns genes desse povo maravilhoso.