quinta-feira, agosto 19, 2010

Vale a pena ler 30: historiador dos bons

O Brasil do final dos anos 1990 era um país que era governado por um presidente com vocação de desentupidor de pia, o que é um grande serviço. Quando você olha para o passado, verifica que o Brasil é uma espécie de pia entupida, na qual os problemas surgem, vão se acumulando, mas os governos não fazem nada. Aí, a cada vinte, trinta ou quarenta anos, aparece um governante e remove o lixo. Fernando Henrique cumpriu essa tarefa, seguindo outros exemplos históricos. Posso citar o visconde do Rio Branco, primeiro-ministro de dom Pedro II. Ele foi o desbloqueador de uma porção de impasses da política brasileira quando chegou ao poder, em 1871. Os grandes problemas, na época, eram o trabalho escravo e, veja como o Brasil não mudou, a atração de capital estrangeiro. Ele criou a Lei do Ventre Livre e incentivou a construção de estradas de ferro por meio de um sistema de garantia de lucros mínimos. O Brasil atual esperou que Fernando Collor fosse essa pessoa, mas ele não tinha maturidade nem preparação intelectual. Já Fernando Henrique era uma pessoa bem preparada, e a prova disso é a conversão que ele fez nas próprias idéias sociológicas do início da sua carreira até quando ocupava o cargo de presidente.

Ele era acusado de renegar o que escreveu, mas isso era uma bobagem. Homem político não tem idéia. Quem tem idéia é sociólogo. Fernando Henrique não foi eleito para aplicar uma teoria. Essa acusação era até um elogio, sinal de que ele não era um fanático das próprias idéias. Além disso, Fernando Henrique gostava de ser presidente. Isso é uma coisa importantíssima, porque nós vínhamos de quatro governantes que detestavam ser presidentes.

Fernando Henrique gostava do exercício do poder no sentido autêntico. Os outros só gostavam da liturgia do cargo, da bajulação e das viagens. Sarney, na verdade, não queria ser presidente. Queria ser escritor. Para Collor, a Presidência era um derivativo da vida de playboy. Já Itamar era um engenheiro fracassado e por isso migrou para a política. Nos países desenvolvidos, os governantes são recrutados entre os melhores em suas atividades. Já no Brasil quem não dá certo em nada vira político. Nisso Fernando Henrique também era exceção: ele era um sociólogo bem-sucedido que entrou para a política. Outra particularidade: em qualquer outro país, acabou a Presidência da República, tchau!, o sujeito vai para casa ou cria uma fundação. No Brasil, eles viram almas penadas. O que foi Jânio Quadros durante trinta anos? Collor seguiu o mesmo destino. Vai ficar trinta anos criando instabilidade para o país.

Eu, particularmente, fiquei muito decepcionado com Getúlio Vargas depois que li seus diários. Eles mostram que ele foi um superburocrata. No diário dele não há uma só frase que denote uma convicção. Mas, para o bem e para o mal, Getúlio Vargas é a figura dominante da política brasileira no século XX. Será fundamental para o historiador do futuro entender o Brasil do nosso século, assim como Pedro II em relação ao século XIX. Getúlio durou no Brasil porque tinha qualidades que não eram brasileiras. Primeiro, ele era uma pessoa serena, o que é raro por aqui. Em segundo lugar, era um sujeito com um autodomínio admirável.

Não acredito que o brasileiro tenha essas qualidades todas que passou a atribuir a si próprio. O que Sérgio Buarque disse não foi entendido direito. Ser cordial pode ser também um defeito. O "homem cordial" é aquele que age com o coração, que não raciocina segundo parâmetros lógicos, mas sim de acordo com impulsos afetivos. Quanto ao destino do povo brasileiro, acho que não somos talhados para nenhuma posição de liderança no mundo. Se conseguirmos ser um Canadá dos trópicos, já estará muito bom.

O Canadá é um país que nunca teve ambições de liderança mundial, nem será capaz de rivalizar com os Estados Unidos na maioria dos terrenos. Mesmo assim, consegue manter um crescimento econômico respeitável, distribuição de renda exemplar e um regime de liberdade sem defeitos. Podemos esperar mais do que isso?

Essa idéia de que o Brasil vai entrar pro primeiro é de um provincianismo enorme. Com o fim do comunismo, não existe mais o Segundo Mundo, portanto acabou também o Primeiro. O que existe são uns nove ou dez países realmente desenvolvidos e o resto, um grupo que engloba nações que vão da Espanha ao Sudão e estão em diferentes estágios. O que importa, em vez dessa besteira, é desenvolver-se o máximo possível sob um regime de liberdade.

Existe um modismo entre os intelectuais brasileiros de construir teorias destinadas a explicar o Brasil. Mas toda essa tradição de explicação do Brasil, muito antiga, não tem nada a ver com ciência. É um gênero literário, e ainda por cima importado. Todos os países periféricos da Europa, que ficaram à margem do desenvolvimento capitalista, conceberam, no século 19, uma espécie de angústia de identidade e é por causa dessa angústia que surgem esses livros. Você vê isso na Rússia muito bem. Isso passou para a América Latina. Deu boas coisas, como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Mas é um problema de país inseguro. Essa literatura é puro impressionismo sociológico. Vamos pegar, por exemplo, um livro-chave da interpretação do país, Retrato do Brasil, de Paulo Prado. A frase inicial diz assim: "Numa terra radiosa vive um povo triste". Se me pagassem muito bem, escreveria um livro partindo do oposto e explicaria o Brasil da mesma maneira: "Numa terra triste vive um povo radioso". O povo brasileiro é alegre. E não há nada mais triste do que a natureza tropical, que é barroca. Você já viu coisa mais deprimente do que Ilhabela? É uma paisagem excessiva, que esmaga as pessoas.

O intelectual brasileiro, quanto mais delirante for, mais é considerado inteligente. O cineasta Glauber Rocha era um delirante; o antropólogo Darcy Ribeiro era outro. O essencial do que ele fez foi requentar, sob uma aparência esquerdizante, as idéias de Gilberto Freyre. Gilberto exorcizou o complexo que o Brasil tinha por causa da mestiçagem, transformando isso num valor positivo. Depois dele, essa questão deixou de preocupar os intelectuais. Veja a geração de Celso Furtado e Raymundo Faoro, por exemplo. Mas aí vem o Darcy e ressuscita, pelo avesso, um problema que não existia mais, com afirmações do tipo "mestiço é que é bom". Só aqui, também, cantores de música popular viram pensadores. No Brasil, quanto menos objetivo você for, mais você é considerado inteligente. No Brasil, a objetividade é considerada coisa para comerciante.

Uma das questões que passam ao largo da analise de sociólogos e historiadores é o aparecimento do Brasil do interior. Antigamente, o país só tinha litoral e só de São Paulo para baixo havia algum desenvolvimento fora das capitais. Hoje isso mudou. Veja o fenômeno de Petrolina, às margens do São Francisco. Na região de Uberaba, o pessoal tem uma prosperidade incrível. Esse Brasil do interior, que se afirma cada vez mais, tem valores bastante diferentes. Eu diria até que é um Brasil meio vulgar, em relação ao litoral. Em termos de cultura é a boçalidade completa. Uma coisa que me intriga especialmente é a popularidade dessa música sertaneja em termos nacionais. Antigamente, só quem se interessava por música caipira era folclorista. O meu medo é que esse pessoal venha a se afirmar sobre a vida brasileira com formas meio pobres de sensibilidade.

Em termos políticos, seria uma versão mais radical do coronelismo. Os coronéis de hoje, de Goiás, Mato Grosso e Rondônia, têm muito mais poder do que os coronéis do Nordeste. O senhor de engenho mandava sobre uma área pequena. Hoje eles mandam sobre áreas enormes que percorrem de helicóptero. É só lembrar da novela O Rei do Gado. Quando esse pessoal começar a pesar na vida política brasileira para valer, o que deve acontecer nos próximos decênios, a História do Brasil vai ser um pouco diferente. E não vai ser necessariamente melhor. Eu não tenho dúvida de que, do ponto de vista econômico, esse pessoal tem uma mentalidade muito mais aberta, muito mais progressista, do que os coronéis do Nordeste. Mas o impacto deles sobre a vida política do país em trinta ou quarenta anos pode ser muito mais autoritário do que se pensa.

No Brasil, sempre há uma febre comemorativa sobre algum evento. Em 1995 foi Zumbi. Em 1997 foi Canudos. Depois vieram os festejos pra celebrar os 500 anos do Brasil. Porém, refletir sobre qualquer período histórico é saudável. O problema é você singularizar um período e, aí, criar um mito social, atribuindo a figuras do passado projetos ou ambições que são, na verdade, de hoje. Veja o caso de Zumbi. A base documental sobre esse assunto é escassa, pois no quilombo eles não tinham escrita. Dizer, como se disse, que o movimento de Palmares era de independência nacional é uma besteira. Todo movimento desse tipo visava à constituição de uma sociedade paralela e não a mudar o sistema.

A manutencao da unidade nacional é vista como grande contribuicao da colonizacao portuguesa, mas como disse Joaquim Nabuco, a colonização portuguesa tem uma nódoa irresgatável: a escravidão. É a instituição que, por si só, é capaz de explicar o maior número de variáveis da História brasileira. A grande propriedade, o mandonismo, o familismo, tudo isso vem da escravidão. O tráfico de escravos, até o fim, em 1850, foi um negócio de portugueses. O brasileiro se endividava para comprar escravos. Quanto à unidade do Brasil, ela decorre, na verdade, de um defeito português: a pobreza de imaginação. Você repara que todas as praças de cidades do interior, no Brasil, são iguais, seja em Mococa, São Paulo, ou Santarém, no Pará.

Eu raramente vou ao cinema, mas assisti a Carlota Joaquina. Li um artigo dizendo que era uma revisão da História brasileira. É um absurdo. Nesse filme a diretora usa todos os estereótipos, inclusive a imagem do dom João VI caricato, comendo franguinhos e limpando as mãos na roupa. Como pode ser uma revisão? O historiador Oliveira Lima escreveu, há quase 100 anos, um livro para acabar com todos esses chavões sobre dom João VI. Não adiantou nada, pois a diretora do filme, ao que parece, não leu Oliveira Lima. Ou, se leu, não concordou.

O século XX teve três momentos importantes: 1945, com o fim do nazismo; evitar a guerra nuclear em 1962; e a queda do Muro de Berlim, em 1989. Num caso, tivemos a presença de Churchill, que é na minha opinião o grande personagem do século. É o último grande líder de guerra da História, comparável a Júlio César e Alexandre, o Grande. Em outro, Kennedy, aliás, é interessante notar que, na ocasião, ele teve um equilíbrio admirável. As pessoas reclamam de sua vida privada, de suas infidelidades, mas se esquecem de uma coisa. Ainda bem que Kennedy era um playboy, um hedonista, uma pessoa bem resolvida. Imagine Nixon, uma pessoa torturada, no lugar dele, sendo submetido a uma crise política daquela envergadura. Poderia ser o começo da guerra nuclear. Sobre o final do Muro de Berlim, há um dado interessante. Os americanos sofisticados pensaram várias coisas para acabar com a Guerra Fria. O embaixador George Kennan, por exemplo, veio com a doutrina da contenção e o secretário de Defesa Robert McNamara, com aquele negócio de "retaliação graduada". Aí chegou um boçal, chamado Ronald Reagan, que inventou a "guerra nas estrelas", queria arrebentar todo mundo, e resolveu o negócio em alguns anos. Deu certo, o que prova que a História, muitas vezes, é o reino da boçalidade. Não é coisa para gente inteligente, não.

* Por Evaldo Cabral de Mello, historiador pernambucano, irmão do poeta Joao Cabral de Mello Neto.

Nenhum comentário: