domingo, outubro 10, 2021

Os bons morrem jovens


 

“The good they die young“

Dick Holler

Diz a lenda que os bons morrem jovens. Quando eu vejo um vagabundo de 15 anos de idade morto, no Rio de Janeiro, que momentos antes de ser alvejado empunhava um fuzil AR-15, fico me questionando sobre a veracidade dessa afirmação. Na verdade a humanidade não espera que uma pessoa morra jovem. A intenção de todos é durar o máximo de tempo que aguentar na terra. Tenho amigos que já partiram e os mesmos não eram nem piores e nem melhores do que eu. Se assim fosse, ou eu deveria já ter morrido ou eles deveriam ter continuado vivos.

Meu velho pai costumava dizer que, uma vez que você tiver zerado seus pecados aqui na terra, Deus te levará pra morada eterna. Zerou os pecados? Vai bater as botas. E brincava dizendo: “Toda vez que percebo que estou chegando perto de zerar, cometo mais um pecadozinho, só pra ficar mais tempo entre vós”. Não conseguiu, pois se foi aos 60 anos de idade, deixando de gozar tantos anos ainda com a família. Mas a causa da morte dele não foi bondade ou maldade. Foi a nicotina ingerida durante 48 anos ininterruptos.


Não curtiu os netos, apesar de minhas filhas estarem com quase 3 anos quando ele partiu. Nunca quis vir ao Canadá para conhecê-las pois disse não conseguir perdurar um vôo tão longo sem fumar. Minha mãe não impôs esse obstáculo à ela mesma e veio algumas vezes. Hoje minhas filhas tem uma foto delas com a minha mãe no lockscreen do telefone delas, justamente porque elas desenvolveram uma relação. Ele não. Eu brinco com elas dizendo que o nome dele é o filho de Jael. Jael-Son. O que elas sabem dele é o que falo sobre ele, subtraído do que elas não prestam atenção.


Meu pai partiu desde 2009, mas raro é o dia que não penso nele. Sinto um alívio pois ele não está vivendo o apocalipse que vivemos hoje. Meu pai era um homem bom por natureza. Ele não exercia a moda de hoje: a sinalização de virtude! Em outras palavras, ele não queria mostrar aos outros que era bom. Ele simplesmente era. Eu poderia escrever um livro dos exemplos que ele me deu com ações e não com narrativas.


Um dia, quando eu tinha uns 13 anos de idade, ele lia um artigo na revista Veja, sentado à mesa de almoço e disse, do nada: “Meu filho, a maior tristeza da minha vida seria vê-lo preso um dia”. Lembro que no momento dei de ombros e pensei: “Ser preso? Esse bicho tá doido é?”. Acho que ele lia algum artigo sobre algum adolescente bosteiro.


Antes de continuar, quero contar como meu pai fazia quando chegava do trabalho. O seu ritual. O homem era cheio de rituais. Tirava sua camisa social e dependurava sobre a cadeira da mesa de jantar da sala, uma mesa de 8 lugares. Não fazíamos as refeições diárias lá e sim em uma mesa redonda na cozinha. Era o costume da época. Mas ele tirava sua camisa, dependurava na cadeira lá e ia pra cozinha sem camisa, porém com sua calça social e sapatos. Depositava os óculos sobre a mesa e almoçava lendo a revista Veja. Um artigo por dia, acho. Quando acabava de ler o artigo do dia, deitava a Veja sobre a mesa e vinha conversar conosco. Eu particularmente ficava esperando ele acabar a leitura pra ter um pouco da atenção dele.


Ele sorria, colocava os óculos de volta no rosto e fazia alguma perguntas à algum de nós. Sempre com um sorriso nos lábios. Era sua marca registrada. Lembro da sua mão. Da sua risada. Da sua sobrancelha. Da sua barba arranhenta. Do seu perfume. Do cheiro de cigarro. Pai, como sinto sua falta. É muito ruim viver sem saber que estás por aqui. Você me transmitia segurança como nunca senti depois de sua partida. Hoje eu tenho que ser a segurança de todos.


Quando meu pai viajava eu não confiava nas fechaduras das portas e das janelas. Sonhava com ladrão entrando em casa e toda sorte de assombro. Saber que ele dormia no quarto ao lado era o reconforto do menino apavorado.


Eu não falo muito pois me machuca falar. Prefiro mudar de assunto. Melhor calar. Mas rapaz, que falta eu sinto do meu pai. Hoje virou lugar comum vários filhos falando sobre seus pais, quando sabemos que muitos foram e são corruptos sem vergonha. Meu pai não, meu pai foi honesto e morreu pobre. Poderia ter morrido rico, mas preferiu o caminho da dignidade. Desafio qualquer um a me provar que meu pai foi corrupto. Mas desafio mesmo. E não é de boca, como costuma falar o filho de Lula, por exemplo.


Uma frase que ele disse, aos meus 13 anos de idade, ficou na minha cabeça pra sempre. “Não seja preso”. E todas as minhas ações tinham como raia justamente isso. E nunca fui preso. Obrigado, papai, por ter sido meu exemplo. Eu carrego essa frase hoje por 33 anos. E tento passar os seus valores pras suas netas. Que pena que elas não conheceram papai.


Uma simples frase que se abre em um estilo de vida. Não seja preso significa: “Seja honesto, faça as coisas com dignidade, honre suas calças, seja homem, caminhe na sombra da bondade”.


Hoje tenho alguns amigos que por dinheiro se sujeitam as mais baixas relações empresariais com o setor público. Rezo por eles, espero que tenham compreensão que a vida é muito mais do que dinheiro. Dignidade, moral, retidão valem muito mais do que uns papéis pintados impressos por bancos centrais por aí. O dia D chegará e todos estaremos sentados frente à frente com o pai celestial. Qual será o curriculum que puxarás? Nenhum, pois o teu curriculum estará já impresso por lá.


Papai, toda ação que eu tomo hoje, sua imagem vem à minha face, como um holograma. O senhor Jaelson Cavalcante das Neves é um exemplo que frequenta meu campo de visão diariamente. Um dia um sujeito metido à besta perguntou, cheio de arrogância: “Quem é seu pai, vocé é filho de quem?”. Eu respondi, timidamente: “Você não o conhece, meu pai se chama Jaelson, não é do seu círculo de amizade”. Ele disse, arrogante: “De fato, não conheço”.


Algumas semanas depois, contei esse fato a meu pai, que no momento dividia uma mesa do Bar do Pedro com meu tio Jaeci. Meu tio Jaeci é um dos irmãos do meu pai, mais novo. Inesperadamente, tomei uma dura do meu tio Jaeci. Enfurecido, meu tio disse, gritando: “Você tenha orgulho do seu pai, seu cabra. Seu pai é meu irmão, que me levava pras festas, que me arrumou meu primeiro emprego, que é filho de Juvenal e Rachel, ele ferroviário e ela dona de casa, que criaram todos os filhos pra serem homens de bem...”


Ante a meu silêncio e espanto, afinal eu não havia dito nada demais, meu pai deu uma batidinha no braço do meu tio, como se pedindo pra ele parar de falar. Pegou no meu pescoço e me trouxe pra perto dele. Me deu um beijo na testa e disse: “Meu filho, não ligue pro que seu tioele deve tá nervoso com alguma coisa na vida dele. As vezes escutamos coisas e não podemos responder. As vezes falamos coisas que não devemos. O que importa é o que temos aqui”, e apontou pro coração.


Eu entendi que o meu Tio Jaeci se decepcionou com o fato de eu ter covardemente não me imposto com o boçal interlocutor. Hoje eu teria feito diferente, mas naquela época eu ainda não tinha os culhões de touro. Eram apenas culhões de cachorro.


Mas o fato é que meu tio Jaeci ficou olhando pro meu pai com admiração, com os olhos marejados. Meu pai era uma espécie de ídolo pra ele. Claro que ele o conhecia mais do que eu. Viveram mais como irmãos do que eu como filho. Não consigo esquecer esse dia. Eu não disse nada. Mas como eu queria ter dito.


E ter dito não só ao meu pai. Mas também ao sujeito que disse que não sabia quem ele era e nos tratou com desdém. Tipo, “se não conheço, é porque ele é irrelevante”. Coitado. Não poderia estar mais errado. A passagem dele na terra foi iluminada de tal forma que esse texto não faz 1% de justiça ao homem que ele foi. A justiça eu plena certeza que ele anda recebendo por onde está agora.


No funeral do meu pai, eu ia me dirigindo pra ir embora e vi meu tio Jaeci. Meu tio Jaeci é a maior referencia do meu pai. Eles tinham uma amizade incrível. Eram muitos próximos. Eu o respeito muito. Eu o interpelei. Ele disse que tava com um problema de saúde e não estava bebendo. Eu disse a ele: “Tio, papai me disse que no dia que ele morresse, ele não queria tristeza. Ele queria que eu fosse almoçar e tomar todas pra celebrar a vida dele. Mas eu não estou me sentindo à vontade pra fazer isso, o que o senhor acha?”


Ele disse: “Meu garoto (como ele me chama carinhosamente), se seu pai disse isso, eu te autorizo, vá embora e faça como combinaram. Eu só não vou pois estive doente e quero me recuperar, mas vá em frente”. E fomos pro Tábua de Carne de Areia Preta, nós e os amigos mais chegados. Agradeço à todos que lá estiveram não em homenagem à mim, mas ao velho Jajá.


Eu me conformo em saber que jamais conseguirei ser nem um décimo do que foi meu pai. Um dia eu estava com Reginaldo Jales, O matuto, um amigo antigo e ele me disse: “Fabiano, gosto muito de você e você é uma pessoa boa, mas você jamais vai amarrar os sapatos de Jaelson”. Eu senti um orgulho enorme dele ter dito isso. Essa foi a maior honraria que ele poderia ter me feito.


Carreguei a frase de Reginaldo pra Alexandre Motta, O Pezão, e perguntei sua opinião. Eis que ele disse: “Tu é doido? Pra tu ser um Jaelson tu teria que viver umas cinco vezes!!”. Meu coração se encheu de alegria. Bruno Galvão, outro amigo, me disse certa vez: “Rapaz, encontrei com teu pai em Pedro. A alegria dele é falar em tu,os olhos dele chegam a brilhar, conta histórias, pergunta, eu gosto muito de tomar uma com ele!”.


Thanks Daddy, thank you for everything. Você foi um “man amongst men!! Eu prometo viver o resto dos meus dias “lookinp up to you”!! E se um dia nos encontrarmos, vou te dar um abraço pra torar suas costelas celestiais e te avisar que pelo menos por Natal, ninguém toma mais Antártica. A onda agora é Heineken!!!


Fabiano Holanda Cavalcante

Mississauga, Ontário, Canadá.

Outubro de 2021.

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