quarta-feira, abril 20, 2011

Vale a pena ler 35: Rebelde em paz

Dizem que os judeus perderam Jesus Cristo por uma falha de relações públicas. De certa forma foi isso mesmo que aconteceu. Em vida, Jesus conseguiu reunir a sua volta apenas um pequeno grupo de judeus que estavam levando o judaísmo para uma direção diferente da original. A cristandade só começou, na verdade, quando o apóstolo Paulo, talvez a força política mais decisiva nos primórdios da fé cristã, decidiu pregar para os não-judeus. Paulo chegou à sábia conclusão de que seria preciso arrebanhar os gentios. Foi dessa maneira que o cristianismo escapou de ser apenas uma pequena seita judaica dissidente e se transformou nessa poderosa corrente cultural que moldou a forma de pensar do Ocidente.

Não escrevi o livro com a intenção de mostrar o lado judeu de Jesus. Para começo de conversa, embora seja judeu e me sinta como tal, não sou religioso. Há trinta anos não entro numa sinagoga. A religião não tem muito significado para mim a esta altura da vida. Não escrevo como judeu. Depois de 55 anos de trabalho, escrever para mim é um ato tão fundamental da vida quanto comer ou andar. Concordaria com a idéia de que fiz um livro em que a história de Jesus é examinada de um ponto de vista exterior. O resultado é um Cristo mais humano do que divino. Algumas pessoas estranham a colocação de Jesus como o narrador da própria história.

Além do dinheiro, existem outros motivos que me motivam a escrever. Meus maus motivos para produzir são tão importantes quanto os bons. Continuo escrevendo também para tentar descobrir até que idade posso manter-me criativo num nível aceitável. No caso do Evangelho Segundo o Filho, o que ocorreu foi que, tendo lido o Novo Testamento há mais de quarenta anos, quando ainda estava na faculdade, sempre me incomodou o desconcertante desequilíbrio do livro do ponto de vista estético. Alguns trechos são tão extraordinários que só se podem comparar a Shakespeare. Outros têm um estilo pedestre, sem inspiração, escrito às pressas. A história em si não faz muito sentido: Deus manda seu filho à Terra com o objetivo de salvar a raça humana. Faz questão de que ele venha como um homem de carne e osso para tornar sua mensagem mais eficiente. Então você lê o Novo Testamento e o que encontra? Um anjo, um super-homem, alguém superior a tudo, que nunca comete um erro, nunca falha e faz tudo certo até o fim, e, então, pregado na cruz exclama: "Pai, por que me abandonastes?" É contraditório.

A explicação desse enredo confuso deu origem a uma extensa teologia cristã. Não é por acaso que os teólogos cristãos são tão numerosos, profundos e radicalmente divididos. As mentes mais poderosas dos últimos vinte séculos debruçaram-se sobre esse paradoxo. Algumas das explicações são belíssimas, outras são muito eficientes, mas todas são torturadas. Daí cheguei à conclusão de que talvez a melhor abordagem para essa história seja a de um romancista. Não é preciso ser um cristão ou um gênio para contá-la, pois todo cidadão do Ocidente está profundamente imerso cultural e psicologicamente no cristianismo. Tentei então criar um Cristo que fosse simplesmente um homem, alguém que se torna mais profundo e mais sábio ao longo da vida.

A morte de Cristo, que deveria ser a derrota do cristianismo, acaba sendo um genial lance político que catapulta o movimento pelos séculos afora. Deus dá a entender que ele não é tão poderoso quanto se acreditava. Deixa claro que o poder celestial se resume a fazer o melhor que pode. Essa fraqueza, aliada ao poderoso componente dramático de deixar o próprio filho morrer para nos salvar dos pecados, resulta na grande força poética do Novo Testamento. Bill Clinton, como bom cristão, sabia disso. Ele realmente transformou uma derrota, o escândalo provocado por acusações de manter relações sexuais com uma jovem na Casa Branca, numa vitória: a teoria de que era vítima de uma conspiração. Ele tem um talento imbatível para isso.

Clinton foi um presidente trágico. Votei nele mas me arrependi. Ele é um gênio do nível do sujeito que inventou o hambúrguer do McDonald's ou a lâmina de barbear. Com certeza, é um dos maiores políticos de todos os tempos. A tragédia decorre do fato de que alguém potencialmente talentoso como Mozart ou Shakespeare não consiga exercer sua genialidade por uma falha de caráter. Nas democracias, os políticos exercem a força pela ética. Justamente o que faltava a Clinton. Ele não desafiou o mundo. Foi fraco com os fortes e poderoso com os fracos. Ele destruiu o Partido Democrata tornando-o um simulacro dos republicanos.

Dick Morris, seu mais íntimo assessor, era um sujeito que se realizava lambendo os dedos dos pés de prostitutas no quarto do hotel. Sei que estou sendo brutal, mas não encontro outras palavras para descrever a situação. John Kennedy era conquistador, mas pelo menos tinha estilo e seu comportamento era adequado para a época. Bill Clinton agia como um caipira deslumbrado com a cidade grande. Ele ficava perseguindo umas mulherzinhas que em Washington os políticos com um mínimo de compostura ignoravam. Clinton foi poderoso o bastante para cortar os benefícios sociais dos pobres. Mas foi um anão diante do interesse dos ricos e das grandes corporações.

Acho que as corporações são um mal mesmo com o período de prosperidade e pleno emprego. Marx chegou à beira da insanidade em sua visão do futuro da humanidade, mas foi bastante razoável em sua crítica do capitalismo. Ele diz com razão que, no capitalismo, o dinheiro tende a subjugar todos os demais valores. O papa João Paulo II tem dito a mesma coisa. Meu temor é que o capitalismo, ao se alastrar globalmente sem freios, acabe por devorar os demais valores humanos em todas as partes do mundo. Nesse ritmo, em pouco tempo ficaremos sem uma reserva de valores e concepções que não tenham sido contaminadas pelo capitalismo. Podemos vir a precisar muito desses valores no futuro.

Acho que o mundo era melhor nos anos 60, quando apanhávamos da polícia nos protestos de rua em Washington. Pelo menos havia mais esperança naquela época. O mundo parecia uma obra aberta. Pensávamos que podíamos tudo. Logo descobrimos que nossa força era falsa. A polícia matou quatro estudantes no campus da Universidade Estadual da Pensilvânia em 1968, e nós nos escondemos. A revolta, em vez de se incendiar, tomar conta do país e derrubar o governo, estiolou-se. Descobrimos que não éramos revolucionários coisa nenhuma. Tínhamos um movimento de classe média espasmódico e inconsequente. Foi uma dura revelação. A esquerda acabou nos Estados Unidos. Pelo mundo afora ela continuou produzindo seus erros prodigiosos, trocando princípios por pequenas vitórias eleitorais. Abraçou uma via racional para o poder enterrando o que tinha de melhor, a meu ver, que era o apelo quase religioso à igualdade. Qualquer pessoa sabe instintivamente que não se pode ter uma sociedade justa quando as diferenças salariais são muito agudas. Essa disparidade gera doenças sociais tanto nas camadas de cima quanto nas de baixo. Quando se fala a mesma linguagem da direita e das grandes corporações não se consegue vencer a barreira da imprensa e chegar ao povo.

Aparentemente Bill Clinton sabia como vencer essa barreira da imprensa. No episódio do escândalo sexual ele venceu a imprensa na luta pelo coração e pela mente do americano médio. O que ocorre, porém, é que naquele momento chegou o momento esperado por tanta gente em que a imprensa americana finalmente perdeu completamente o pulso da opinião pública. Bastaria ver como a imprensa trabalha em qualquer país do Ocidente para saber que cedo ou tarde isso aconteceria. A imprensa é formada por um grupo de gente individualmente até sábia, que produziu uma instituição estúpida. Essencialmente a imprensa é formada por um grupo de pessoas que se organizam como num supermercado de idéias. Estão sempre discutindo as coisas entre vocês e, acredito que honestamente, esperam que a melhor idéia prevaleça.

Existe uma tendência inequívoca de seguir um líder ou de fazer oposição radical à idéia predominante apenas para se fazer notar. Este último é o truque básico do colunismo, a doença infantil do jornalismo. Ocorre que, no caso do assédio sexual de Bill Clinton à estagiária da Casa Branca, o povão não se tocou para o que a imprensa estava falando. Nem contra nem a favor.

O povão só soube do episódio através da imprensa, tudo bem mas transmitir os fatos é uma coisa. Outra bem diferente é acreditar que a imprensa pode fazer o papel de médico e tratar todos os males sociais da nação. Simplesmente, o americano bronco do Meio Oeste, um sujeito endurecido que nem falar direito sabe, achou que para ele os fatos bastavam. Não quis saber das opiniões dos doutores da imprensa.

Mas, com certeza, a imprensa não foi a única instituição a sair desacreditada desse episódio. O povo americano está se tornando cada vez mais desconfiado de suas eminências, de seus próceres. Está escaldado de tanta frustração coletiva. Foram escândalos políticos seguidos e a História recente está repleta de assassinatos e violência. Isso tudo provoca desgastes. Não se sabe em quem confiar. As aparências enganam. Ronald Reagan, um presidente adorado pelo povo, engendrou uma das maiores falsificações coletivas da história deste país. Reagan inventou a história de que a União Soviética era o que ele chamava de "império do mal". Sugeria que os soviéticos tinham a vontade e a capacidade de destruir os Estados Unidos pela força. Ao fazer isso, ele reativou a Guerra Fria, um assunto que andava morto e acabado pela própria incapacidade dos soviéticos de fazerem a guerra contra qualquer inimigo. Mal estavam conseguindo se haver com a Polônia e a Checoslováquia.

Visitei a União Soviética em 1984 e vi um país de Terceiro Mundo, de pessoas deprimidas, desmanchando-se em problemas cotidianos. Como poderiam lançar-se num combate total contra um inimigo poderoso como os Estados Unidos? De forma alguma. Mas Reagan nos vendeu a idéia de que tínhamos um inimigo fenomenal. Quando o comunismo desabou e viu-se que o poderio bélico da União Soviética era uma balela, o infantil povo americano sentiu-se traído. Amadureceu à força. Penso que desde então nunca mais o americano médio se entregou de corpo e alma a nenhuma instituição, seja o governo, seja a imprensa.

As feministas também saíram chamuscadas do escândalo sexual envolvendo Bill Clinton. Mas elas se recuperaram depois. Elas têm uma noção do poder muito mais acentuada do que as pessoas comuns. São mestres da dissimulação. Veja o caso de Hillary Clinton, a Madre Teresa do feminismo americano. O que ela personifica? Ela personifica o enorme desejo de poder pessoal e também do feminismo americano. As feministas não estão interessadas em percorrer o interior, bater na porta das casas simples do Meio Oeste ou do Sul para tentar convencer os maridos a tratar melhor suas mulheres e a não ser tão machões. Não. O campo de batalhas delas é Washington.

Seus alvos são os intelectuais liberais como eu. Querem polêmica e poder. Não estão interessadas no bem-estar da mulher americana. As grandes corporações foram as que mais lucraram com as conquistas do feminismo americano. O movimento criou uma geração de profissionais carreiristas, competitivas, impiedosas, que trabalham como loucas e no final ganham menos do que os homens, jogando para baixo as despesas salariais das empresas. Um sucesso, como se vê. Instintivamente elas não poderiam ficar contra Clinton porque o presidente é a fonte de poder delas. Por apego ao poder, as feministas não poderiam ficar contra ele, mesmo sabendo que Clinton regularmente violava na essência todas as crenças delas.

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