domingo, abril 18, 2010

Vale a pena ler 25: Vizinho argentino

As medidas tomadas por Fernando Henrique durante a crise das bolsas de Hong Kong foram imprescindíveis. Elas causaram algum incômodo no funcionamento da economia argentina, e isso gerou uma pequena queda no crescimento do PIB, mas isso não foi tão prejudicial assim. O mais grave seria se o Brasil não tivesse tomado essas medidas. O Brasil e a Argentina já tiveram experiências de hiperinflação durante governos que não tinham coragem de fazê-lo. Na Argentina, o ex-presidente Raúl Alfonsín vivia anunciando reformas, privatizações e controle de inflação. Não fez nada disso e o governo terminou com uma hiperinflação de 5.000% ao ano, e com o país à beira da desagregação. Se o presidente Cardoso não tivesse adotado essas medidas, os brasileiros teriam de enfrentar uma situação parecida com a que os argentinos viveram naquela época.

Estavamos presos a exigências de organismos internacionais de crédito. O Banco Mundial e o FMI, por exemplo, exigiam dos países que estavam associados em mercados do tipo do Mercosul medidas para eliminar o déficit público, cortar gastos supérfluos e arrecadar mais. O Brasil estava apenas fazendo o que todos tinhamos de fazer.

O Mercosul vivia uma crise diferente, de crescimento. Isso pode até parecer um contra-senso, mas não é. O Mercosul estava crescendo em todos os sentidos: político, econômico, social e internacional. Era uma das regiões mais prósperas do nosso planeta.

A crise mais dura para o Mercosul, e especialmente para a Argentina, foi a que começou no México no fim de 1994 e em 1995. Na época, a Argentina tinha um crescimento de 6%, 7% ao ano. Depois da crise mexicana tivemos uma queda de 4 pontos, e uma fuga de capitais que chegou a 8 bilhões de dólares.

Alguns setores da sociedade argentina, e também da brasileira, tinham medo da desvalorizacao do real, sim. Mas eu, que tinha um contato muito intenso com o presidente Cardoso, não temia isso. Nunca temi. O presidente Cardoso me disse que o Brasil era uma fortaleza e que não haveria desvalorização do real. E, depois que começou a crise e as pressões, ele me garantiu de novo que não haveria desvalorização do real.

No sistema cambial argentino, para cada peso na rua tinha de haver 1 dólar depositado no Banco Central. Isso é que dava uma segurança a nossa economia. Mas nós, presidentes, estamos expostos a muitas pressões e lobbies para desvalorizar as nossas moedas.

De zero a 10, a importância do Brasil para a Argentina é 10. Mas o que existe são relações muito boas, de excelente nível comercial. Há uma complementaridade em nossas economias que tende a se equilibrar. É assim no mundo todo. Com os Estados Unidos, por exemplo, abrimos o mercado para a nossa carne, que antes estava fechado por uma suspeita de febre aftosa. Era um mercado extraordinário que se abria.

O segundo mandato é sempre mais difícil do que o primeiro. A cobrança é maior, e nós temos de ser bem mais perfeccionistas. É preciso ter muito mais cuidado. No meu primeiro mandato estávamos dedicados a fazer um ajuste do Estado. A partir desse processo, poderiamos nos dedicar ao que o Estado realmente deveria fazer. O que é o Estado? A definição mais fácil é: a nação, o povo juridicamente organizado. E o povo se organiza e faz leis para que o Estado possa lhe dar assistência em educação, justiça e saúde. Isso é essencial. Por esse motivo admiro o presidente Cardoso, que entregou a empresas privadas todos os serviços que não estão ligados a esses serviços essenciais do Estado. Devemos fazer isso. O presidente Cardoso fez, mas não é fácil. E temos de conseguir bons resultados.

Um dia, dois caçadores andavam pela floresta quando apareceu um urso muito grande. O mais magro correu mais, sem olhar para trás, e o mais gordo ficou pedindo ajuda ao amigo. Quando viu que estava sozinho e não dava para fugir, fingiu-se de morto. O urso veio, cheirou o gordo, e depois se foi. O caçador mais magro então voltou e perguntou: o que aconteceu, o que disse o urso? Ao que o gordo respondeu: me disse que é para tomar cuidado com os amigos que tenho. Acho que um presidente deve selecionar muito bem sua equipe. Porque, além da honestidade, a lealdade é o bem mais valioso nessas horas. Quem acompanhou Jesus Cristo ao calvário foram só os mais leais, e a partir deles nasceu o cristianismo.

Nunca nenhum governo argentino deu tanta liberdade, tanto direito de opinar à imprensa como eu dei. Quando assumi, todas as TVs e rádios eram do Estado. Nós as vendemos. Mas o que deve fazer uma pessoa quando se sente atacada, ofendida? Tem de recorrer à Justiça. Se existe algum patrimônio político é a honra e a dignidade. Muitas vezes vejo contra mim e meus familiares ataques infundados, agressões sem limite. E ainda existem na Argentina sérios obstáculos a quem quer reparar sua honra. Uma lei diz que a pessoa só pode ser condenada por calúnia ou difamação se ficar provado que ela tinha uma má intenção. Por causa disso, o Estado já perdeu vários processos, e eu mesmo já perdi três contra jornais na Justiça.

Eu tenho como princípio que há responsabilidade na imprensa, mas toda regra tem exceções. E eu continuo lendo absolutamente todos os diários nacionais argentinos. Diariamente, às 7 horas da manhã, lia as notícias, as boas e as ruins para o governo, e as comentava com meu secretário de imprensa. Leio também alguns artigos de jornais de outros países, até do Brasil.

Minha vida depois que me separei é totalmente dedicada ao trabalho e a minha filha Zulema. Como hobby, pratico esportes, ou acompanho os jogos do River Plate, meu time. Trago sempre as fotos de minha filha e de meu filho, que faleceu em um acidente. Ando com o relógio que ele estava usando no dia do acidente. Agora sou eu que o uso, para lembrar dele.

* Por Carlos Menem, ex-presidente argentino de 1989 a 1999.

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