domingo, junho 13, 2010

Vale a pena ler 28: O senhor guerra fria

O século XX foi um século trágico. Tivemos duas grandes guerras que sacrificaram a maior e a melhor parte da juventude dos ingleses, franceses, alemães, russos e, num grau menor, americanos. Esses povos não tinham capital melhor do que o representado por seus jovens, capital perdido em batalhas. A I Guerra Mundial foi ainda pior. Um de seus produtos, a Revolução Bolchevique, envenenou as relações entre o povo russo e o Ocidente por mais de setenta anos. A Europa teve perdas enormes e ainda hoje se ressente disso. Nesse sentido, a América Latina é o mais feliz dos continentes porque evitou envolver-se de modo profundo nos conflitos globais. Não sofreu as grandes distorções trazidas pelas duas guerras mundiais.

Os americanos demonstram o mais completo desconhecimento sobre a América Latina e nós só podemos ter esperança de que um dia a diplomacia americana se recupere e comece a olhar seriamente para a América Latina. Poucas pessoas fazem isso neste país. Um dos grandes problemas da política externa dos Estados Unidos é que, em grande parte, ela é conduzida ao sabor de considerações domésticas. Obviamente isso confunde os outros. Há muitos anos não temos um presidente com força bastante para dar um basta nessa situação. Tem muita gente opinando sobre política externa em Washington, quando ela deve ser privativa do presidente e do secretário de Estado.

A relação entre os países resume-se à questão comercial. Mas essa é uma questão enganosa, não importa a ênfase que se dê a ela atualmente. Acredito que basicamente os valores psicológicos e políticos sejam os que realmente contam. Não há por que ficarmos impondo condições e exigências aos países da América Latina, por exemplo.

Deveríamos fazer alianças, mas somos péssimos em alianças. Praticamente só temos duas. Uma com o Japão e outra com a Otan. Nada mais. Nem com Israel conseguimos estabelecer um acordo amplo de cooperação mútua. Nossos envolvimentos na Ásia, África, América Central e no Extremo Oriente são arranjos de ocasião. Não sou um especialista em América Latina, mas sempre digo ao nosso pessoal em Washington: "Tratem esses países com cortesia, com respeito, sempre. Não esperem muito deles no curto prazo. Façamos negócio quando eles quiserem negociar e seja proveitoso também para nós. Deixem que eles se desenvolvam da maneira deles". De modo geral, acho que a melhor maneira de um grande país ajudar os menores é pela força do exemplo. Temos de diminuir a estridência da nossa voz. Na questão ambiental, e mesmo em democracia e direitos humanos, nós temos muitas falhas para ficar bancando a palmatória do mundo.

Parece-me que o melhor que podemos fazer com relação a questão do islamismo é ter cautela. Quando o fundamentalismo tomar o poder num país, como fez no Irã e no norte da África, então deveríamos fazer alguma coisa. A coisa a fazer é manter a dignidade. Deveríamos deixar uma pequena representação diplomática mas não embaixadores nesses países. Nossa posição deveria ser esta: "Olhem aqui. Não temos poder sobre seu país. Governem da maneira que quiserem. Nada faremos contra vocês, mas também não esperem nossa ajuda". Estou-me tornando cada dia mais isolacionista, no sentido de que não quero nossa diplomacia tentando resolver problemas que ela não entende. A questão central de nosso envolvimento em outro país deve ser a coerência de princípios. Ou agimos com base em princípios que justifiquem todas as demais intervenções ou então é melhor não intervir.

Mas a política externa de Washington contraria frontalmente tudo o que disse no parágrafo anterior. Washington precisa de uma faxina. Continuamos dizendo às pessoas como elas devem governar seus países. É um erro gigantesco. Deveríamos economizar a energia que gastamos dando lições aos outros países e empregá-la na melhoria de nossa própria democracia. Chega de dizer aos outros como devem governar seu próprio povo. Isso não é correto, pois quem vai aguentar o resultado da aplicação dos nossos conselhos são os outros e não nós. Sou de uma escola diplomática que acredita firmemente em tratar os outros com cortesia e polidez mas não com muita intimidade. Não é o que os Estados Unidos vêm fazendo. Nossa diplomacia criou muitos dependentes. Quando Madeleine Albright era secretária de Estado, se enfureceu com o impasse nas negociações e disse a israelenses e palestinos que nós os deixaríamos à própria sorte, eles ficaram chocados. Ora, fomos nós que criamos neles a ilusão de que somos responsáveis pela sua segurança interna. Por mais fraco que se sinta, um país não pode confiar sua segurança interna a outro.

Para mim a palavra globalização não significa nada. No sentido comercial e financeiro hoje há comunicações mais eficientes entre países do que em outros tempos. No campo político ainda estamos longe disso. Graças a Deus. É uma boa política temer qualquer tipo de arranjo que se pretenda global. Sou a favor dos arranjos regionais, porque são os que realmente funcionam. Portanto, não vejo nada de novo que justifique o uso e abuso de palavras pomposas para descrever a presente situação internacional.

O mundo continua grande e complicado. Não acho que os conflitos possam ser enquadrados num único esquema global capaz de ordená-los. Também não sinto que os Estados Unidos estejam preparados para lidar com essa nova situação. Obviamente, temos dois grandes interesses globais. Um é a crise ambiental, incluindo-se nela a superpopulação, a urbanização e a exaustão dos recursos naturais. O segundo é o controle das armas nucleares e as de destruição de massa. Nosso objetivo deve ser a abolição total desses arsenais. Haveria um terceiro, que é uma questão interna mas diz respeito ao mundo todo, dado o nosso poderio. Essa questão é o aprimoramento de nossas deficiências como civilização, é a manutenção de uma sociedade capaz de inspirar o mundo.

O perigo de uma guerra mundial hoje está totalmente descartado. Não existe base para a eclosão de uma guerra abrangente, continental ou mundial. Não existe mais a possibilidade de que duas nações industrializadas façam a guerra entre si. As guerras deitam raízes profundas e amargas. Além disso, o grau de desenvolvimento das armas, não apenas as dos Estados Unidos e da Rússia, mas as de qualquer nação industrializada, faria da guerra um suicídio simultâneo. Mesmo sem o uso de armas atômicas. Paremos de pensar nesses termos. Paremos de pensar em termos militares.

Os militaristas causaram danos sérios a este país. Eles construíram a imagem da União Soviética como um inimigo grande e terrivelmente poderoso. O resultado prático mais absurdo dessa noção foi que montamos um arsenal de 200.000 armas e ogivas nucleares nas mãos. Santo Deus! Um décimo disso provavelmente seria bastante para tornar a vida impossível em vastas regiões do planeta. Tudo produto dos exageros dos militares.

Eu diria que não houve nada de ideológico no sistema soviético. O comunismo não é um ideário tão poderoso quanto parece. Ideologia não constrói regimes. As pessoas o fazem. As situações também. O regime soviético foi construído por ambos. O regime soviético e a Guerra Fria foram, na verdade, produtos das duas grandes guerras mundiais. Houve um período durante a II Guerra Mundial em que nem a França, a Inglaterra e nós, em conjunto, seríamos militarmente capazes de derrotar Hitler. Dependíamos visceralmente dos soviéticos. As tropas deles absorveram 85% dos ataques alemães por terra.

Tivemos a chance de derrotar Hitler sozinhos em 1938, mas não o fizemos. Hitler conseguiu montar uma formidável máquina de guerra entre 1939 e 1940. Um ano antes, quando ele pressionou a Checoslováquia, se todas as potências ocidentais tivessem reagido, é provável que o Estado-Maior alemão destituísse Hitler. Se isso tivesse acontecido, a Alemanha certamente teria sido um país diferente. Mas não aconteceu. Hitler teve o tempo e os recursos suficientes para desenvolver seu poderio bélico a tal ponto que os aliados não o poderiam enfrentar sem a ajuda dos soviéticos. O resultado disso foi que brotou entre nós uma relação confusa com os soviéticos, de quem fomos, então, completamente dependentes. Dizia-se toda sorte de tolices sobre a nobreza do aliado soviético. As pessoas se esqueciam de que esse aliado fora o mesmo que cooperara com Hitler até bem pouco tempo antes e que tentou fazer a paz em separado com ele. Como funcionário do governo americano em Moscou, era meu dever alertar Washington sobre a realidade soviética e seus objetivos imediatos, daí a origem do chamado Longo Telegrama e, mais tarde, do artigo na revista Foreign Affairs assinado simplesmente com um X.

Escrevi dois documentos que são considerados influentes e altamente citados na história contemporânea dos Estados Unidos (o longo telegrama e o artigo X) e muitas vezes sou ouvido, mas nem sempre. Outras vezes, interpretaram mal meus pontos de vista. A tese de que deveríamos confrontar os russos sempre que fosse necessário transformou-se numa corrida às armas, na constatação equivocada de que, se não era possível cooperar com eles, a única saída seria fazer uma guerra contra eles. O medo de que os russos atacassem a Europa foi tremendamente exagerado. Suas tropas estavam exaustas ao final da II Guerra, o país estava destruído. Eles não estavam em posição de começar uma nova guerra.

Se eu escrevesse o Longo Telegrama hoje, eu diria que a Rússia vai ter um regime mais democrático, mas que não será uma cópia do sistema americano. Diria que em 1910 havia mais gente na Rússia capaz de entender o que é uma democracia do que atualmente. Que os danos ao país pelas guerras e pelo comunismo não foram infringidos em um dia e seus efeitos não vão ser removidos em um dia.

Ieltsin era boa pessoa. Pelo menos não era corrupto. Mas começou a entender que a maioria das pessoas em torno dele eram. Por mais estranho que pareça, o problema da Rússia derivava do fato de que a queda do comunismo foi muito rápida. Se tivesse sido gradual, provavelmente as poderosas empresas estatais soviéticas teriam tido tempo de aprender como se ganha dinheiro no capitalismo. Como não tiveram, antes que o fim chegasse, os burocratas trataram de salvar a pele e mandaram bilhões de dólares para o exterior. Foi uma pilhagem. Gorbachev tentou fazer a mudança de forma gradual, mas Ieltsin precipitou tudo. Para se livrar de Gorbachev, ele desmantelou a União Soviética por decreto.

* Por George Kennan, diplomata americano, cientista político, historiador, nascido em 1904 e falecido em 2005, foi uma figura importantissima na criação da guerra fria.

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