quarta-feira, setembro 08, 2010

Vale a pena ler 31:desmistificando o transplante

Quando a nova lei de transplante foi aprovada, no governo FHC, as pessoas saiam dizendo que estavam com medo de ter seus órgãos retirados durante uma fase de coma, sem que a morte tivesse ocorrido. Esse medo não tem fundamento algum. Ninguém será prejudicado ou terá a morte acelerada por causa dessa lei. Gostaria de deixar isso bem claro. A comunidade médica entende o instante da morte como aquele momento em que o cérebro do doente deixa de funcionar. Não comanda mais as funções vitais do organismo. É o que se chama de morte encefálica. O coração bate, existe pressão arterial, os rins ainda funcionam. O corpo está quente. Mas o quadro é irreversível. Ainda assim, com lei nova ou sem ela, com direito a transplante ou sem, o cérebro já se foi e essa pessoa está morta. Quando há interesse no transplante, essa pessoa tem seus órgãos mantidos em funcionamento por meio de aparelhos, de forma que sejam preservados.

Não há a menor possibilidade de haver uma confusão entre a morte encefálica e o coma profundo. Seguindo padrões internacionais, um protocolo do Conselho Federal de Medicina recomenda uma série de provas clínicas antes do anúncio da morte. Esses exames são realizados duas vezes: no momento da morte encefálica e seis horas depois. São provas de que o cérebro realmente ficou indisponível, de que se encontra em situação irreversível. Para garantir a fidelidade, os testes são feitos por dois médicos. Um deve ser neurologista e nenhum deles pode fazer parte da equipe de remoção de órgãos ou da de transplante. Exige-se também um teste complementar para justificar a morte encefálica. Um exame gráfico, como tomografia ou eletroencefalograma, mede por imagens ou gráficos a atividade cerebral.

As pessoas que acham que vão entrar no hospital e acordar sem os rins, o fígado ou as córneas estão com um receio infundado. Mas esse medo todo deixa uma lição, que é a falta de confiança de parte da sociedade nos médicos e no sistema de saúde. Quem pode acreditar que a saúde funciona quando vê as imagens de pessoas jogadas nos corredores dos hospitais sendo tratadas de forma improvisada porque faltam médicos e leitos? Cenas como essas poderiam produzir até mesmo outra pergunta. Por que devo acreditar que o médico não vai simplesmente me deixar morrer apenas para tirar meus órgãos? Outras tantas perguntas desse tipo podem ser feitas, mas as pessoas precisam ter claro que os médicos têm ética, guiam-se por ela e não ganham nada fazendo o que é errado. São pagos para salvar a vida dos doentes que lhes caem nas mãos e, em caso de óbito, devem lutar para que seus órgãos não sejam desperdiçados.

Quando assumi a chefia do serviço de procura de órgãos do Hospital das Clínicas, em São Paulo, fiquei muito chocado com o caso de um jovem de 20 anos, vítima de acidente de carro. Ele foi atendido num hospital municipal e ali se tentou um hospital melhor, que dispusesse de um aparelho de tomografia. Enquanto os funcionários procuravam por uma ambulância, o jovem teve morte encefálica na maca, no corredor do hospital. Procurados, os pais do rapaz aceitaram a doação, mas ninguém explicou a eles que, para que os órgãos fossem retirados, o corpo teria de ser removido. Um médico de nossa equipe foi até lá para fazer a captação do cadáver. Os pais do rapaz entraram em parafuso quando viram chegar uma ambulância toda equipada e souberam que o filho seria transferido para um hospital de grande porte onde ficaria na UTI para ser submetido a todos os exames que não foram feitos enquanto ele estava vivo e agora, com ele morto, se realizariam. Em crise, os pais acabaram recusando a doação. Afinal, como convencer o pai de um menino que morreu por falta de recursos que ele vai beneficiar outros doentes? Fica no ar a impressão de que a luta pelo órgão é mais importante do que a luta pela vida. Mas não é assim. Para salvar uma vida, às vezes o médico dispõe de minutos, e o relógio é seu maior inimigo. Quando acontece a morte, consegue-se a doação bastando para isso manter o corpo ligado a aparelhos e o coração bombeando. Com isso se ganham horas. O programa de transplante é muito bonito, mas é preciso olhá-lo com frieza porque ele convive com a ineficiência do sistema de saúde.

Sou obrigado a reconhecer que isso mexeu comigo. Quase fiquei maluco. De repente, posso estar colocando um cadáver na UTI, ligo o que tem de mais complexo e moderno em termos de aparelhagem para cuidar de um morto, enquanto, ao lado, há um paciente morrendo. Gastei muito dinheiro com meu terapeuta. Temos de lembrar que pegaremos a rebarba dos doentes que estão sendo malcuidados nos prontos-socorros. Será que a gente não está pegando doentes que poderiam ter sido mais bem atendidos? O que me conforta é que cada doador pode salvar a vida de, em média, oito pessoas. É o que me faz continuar. Além disso, uma quantidade enorme de pessoas vive, hoje, num estado de debilidade permanente. São doentes passíveis de ser tratados. E esse tratamento é o transplante. Essas pessoas têm uma restrição à vida muito importante. Sem o transplante, morrerão. A maioria tem entre 20 e 50 anos, uma faixa etária produtiva para a sociedade. Costumo citar a frase de um rabino de Israel: "Salvar uma vida está acima da dignidade dos mortos".

Só podemos convencer as pessoas sobre a importância da doação com campanhas de esclarecimento. As pessoas devem ser informadas sobre o que é a morte encefálica, a importância da doação, que a retirada dos órgãos não desfigura o cadáver. Se isso tivesse sido feito, não haveria tanta revolta e recusa a doar. Além disso, alguém que se declara hoje "não doador" imagina que jamais precisará de um órgão. Ninguém está livre de pegar uma virose, desenvolver uma doença cardíaca e ser obrigado a entrar numa fila de transplante de coração. As pessoas não entendem isso. Ninguém tem certeza se algum dia não será o último na fila de um transplante. Essas pessoas que estão carimbando seus documentos para evitar a doação deveriam também mandar carimbar que não querem ser receptoras. O egoísmo é inerente ao ser humano, mas deve ser repensado em algumas situações. A doação de órgãos é uma delas.

Eu peço uma autorização à família do morto, pois se não retirar os órgãos, serei processado por quem está na fila. Por outro lado, seu eu retirar os órgãos de todo mundo, alguma família reclamará que não autorizou a retirada. O que me faz pedir a autorização é um sentimento de ordem moral, que para mim vem antes da ética. Ao retirar os órgãos sem o consentimento dos parentes, posso piorar a dor deles. Eu informo sobre a lei. Tento convencer a família de que infelizmente o paciente morreu. Que isso não era a vontade de ninguém, mas ele está morto. E, agora, a gente precisa desses órgãos. A gente precisa preparar a população para não recusar a doação. Mas é a família que tem de tomar essa decisão. A lei me dá esse direito. Ter todo o poder nesse campo é complicado. Por que tenho de assumir esse ônus sozinho?

É preciso definir o que é oferta. Nem todos os hospitais têm meios de manter um corpo em condições de transplante. Portanto, ainda que haja uma nova lei, ainda que a doação seja maçiça, há um limite inevitável, que é o da falta de estrutura. Acontece que, com a lei, os médicos poderão contar com os órgãos dos pacientes que morrem em hospitais com estrutura. As chances de arrecadação de órgãos aumentam, portanto.

É uma lei correta, bem-feita, que cobre tudo. Diz que todo mundo é doador, a não ser que se recuse por escrito na carteira de identidade. Estabelece que cada Estado brasileiro tem de montar uma lista de pessoas que precisam de doação deste e daquele órgão. E ninguém pode furar essa fila, a não ser que os testes apontem uma incompatibilidade qualquer entre o órgão do doador e o organismo do receptor. A lei regula como se fará a retirada do órgão, para onde esses órgãos devem ser mandados, e também atinge os médicos e os hospitais que farão o transplante. Pela lei, os hospitais que retiram os órgãos devem ser cadastrados nas secretarias de Saúde. Os que não fazem parte do cadastro são obrigados a notificar a existência de um possível doador. As equipes médicas só podem fazer transplantes quando autorizadas. A vigilância é contínua. Não há o perigo de um médico sair arrancando órgãos por aí.

Com a lista única, a família perde o direito de decidir que o órgão de um filho seja usado pra um irmão. É um ônus, sem dúvida, mas é a figura do direito coletivo se sobrepondo ao direito individual. Se a captação é única, a oferta de órgãos aumenta e a fila de espera diminui. Todo mundo será beneficiado porque a lista rodará mais rápido. A lista única é um dos melhores pontos da lei. As equipes de transplantes têm agora de cadastrar seus doentes nas secretarias estaduais de Saúde e aguardar a vez.

Acho pouco provável que essa lei facilite o comércio de órgãos. A tecnologia para o transplante é muito cara e a mão-de-obra precisa ser muito especializada para alguém montar um serviço paralelo. Mas quem o fizer estará amparado legalmente. Isso por conta da brecha deixada a respeito daquele transplante que é feito entre dois seres vivos. Antes, esse tipo de procedimento só tinha autorização para ser realizado entre parentes. Agora, qualquer pessoa considerada capaz pode dispor de tecidos, órgãos e partes de seu corpo para fins de transplantes e terapêuticos.

Solicitei à Polícia Federal uma pesquisa sobre esses mitos urbanos que contam histórias de tráficos de órgãos. Não encontraram uma só ocorrência. O Brasil não tem estrutura para isso. Para fazer um transplante é preciso ter um local físico com no mínimo dois centros cirúrgicos e um laboratório de imunogenética para cruzar o sangue do doador com o do receptor para ver se o órgão não será rejeitado. Além disso, é preciso dispor de um número enorme de doadores para acertar um que tenha o perfil genético parecido com o do receptor. Não é coisa que se monte no boteco da esquina.

* Por Milton Glezer, 52 anos, ex-coordenador da Organizacao de Procura de Orgaos do Hospital das Clinicas de Sao Paulo, o maior centro de transplantes do Brasil.

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