domingo, outubro 17, 2010

Vale a pena ler 33: O criador do futebol lucrativo

Fui eleito presidente da FIFA apenas na primeira vez, quando derrotei o inglês Stanley Rous por 68 votos a 52. A partir daí, sempre me reconduziram por aclamação. Eu ficava porque todos me pediam. No meu último mandato, houve um novo movimento nesse sentido, mas tudo na vida tem um limite. O difícil não é entrar, é saber sair. Afastei-me da Fifa em seu auge, com recursos, competições e uma política de desenvolvimento do futebol no mundo inteiro que ela nunca teve. Além disso, deixei felizes os nossos funcionários, que ganhavam excepcionalmente bem quando saí. Por exemplo, em números de 1998: Uma secretária trilingue recebia, em média, 15.000 dólares por mês. Os chefes de departamento, 25.000 dólares cada um. O secretário-geral, 100.000 dólares.

Eu não recebia nada. A Fifa me pagava as viagens, incluindo alimentação e um automóvel a meu dispor em cada cidade a que chegava. Evidentemente, as passagens e os hotéis eram de primeira classe, pois em outras condições eu não iria a lugar nenhum.

As viagens cansavam, mas elas eram parte de meu trabalho. Não conheço ninguém que viajou mais do que eu. Fazia, em média, 800 horas de vôo por ano. Portanto, em 24 anos de Fifa foram 19.200 horas. Essa é a marca que um comandante de Jumbo completa perto da aposentadoria. Como presidente da antiga Confederação Brasileira de Desportos, entre 1958 e 1974, devo ter feito mais de 10.000 horas. Ou seja, passei das 30.000 horas.

Fui recebido por todos os reis, presidentes e primeiros-ministros dos países que visitei. Estive com Reagan, Bush e Clinton nos Estados Unidos, Brejnev, Gorbachev e Ieltsin na Rússia, para citar apenas esses seis. Alguns se tornaram meus amigos pessoais, como o rei Fahd, da Arábia Saudita. Ele me trata como se eu fosse uma pessoa de sua família. Outra feita, encontrei-me com Yasser Arafat e consegui do rei Fahd uma ajuda de 100 milhões de dólares para o desenvolvimento do esporte na Palestina.

Os estudos que realizamos na Fifa mostravam que o futebol movimentava 250 bilhões de dólares por ano na economia mundial, no meu último ano de presidente. Levam-se aí em conta salários de jogadores, bilheteria dos estádios, publicidade, transmissões de televisão, venda de material esportivo, passagens aéreas, ocupação de hotéis, turismo, indústrias paralelas e muito mais. A maior empresa do mundo, a General Motors, faturava 170 bilhões de dólares por ano no mesmo periodo. Pelos mesmos cálculos, o futebol empregava, direta ou indiretamente, 450 milhões de pessoas.

Quase 7% da população da terra trabalhava direta ou indiretamente com o futebol. A estimativa é bastante aproximada. Se contarmos pouco mais de 2 milhões de pessoas por país filiado já atingiremos esse número. Para dar uma idéia, até poucos anos atrás as mulheres não jogavam futebol. Desculpem a falta de modéstia, mas quando cheguei à Fifa o futebol não era nada. Posso dizer hoje que cumpri minha missão.

A missão de transformar o futebol na maior organização do mundo. Até 1974, a Fifa, no intervalo entre uma Copa do Mundo e outra, recebia empréstimos da União Européia de Futebol, a Uefa, para poder sobreviver. Ela promovia duas competições: a Copa, com dezesseis participantes, e o torneio de futebol nos Jogos Olímpicos. Hoje em dia temos dez grandes competições. Quando o Brasil foi tricampeão mundial, em 1970, recebemos como prêmio 600.000 dólares. No Mundial da França, cada seleção ganhou 1 milhão de dólares por jogo. Não há nada igual a uma Copa do Mundo.

Trinta e dois times é um bom número. Com dezesseis times, sistema que vigorou até 1978, tínhamos 32 jogos em 25 dias. Em 1982, com 24 equipes, passamos a 52 jogos em trinta dias. Com 32 seleções, o que aconteceu pela primeira vez em 1998, temos 64 jogos em 32 dias. Em todos os casos os dois finalistas disputam sete partidas. Os jogadores não sofrerão nenhum desgaste adicional.

Quem tem 200 filhos não pode pensar somente no interesse de dois ou três. O futebol africano, que era visto como simples curiosidade, hoje se encontra em franco progresso. Seus melhores jogadores atuam nos grandes clubes europeus. De outro lado, é preciso lembrar que, quando eu aumentei o número de participantes de dezesseis para 24, a receita da Copa passou de 60 milhões para 500 milhões de dólares.

O futebol ganhou muito desde que o empresário alemão Horst Dassler, dono da Adidas, criou a International Sport Leisure, a ISL, em 1974, que se tornaria a maior empresa internacional de marketing esportivo. Mas, ao contrário do que pensam, eu jamais tive ligação alguma com empresas que assinaram contratos com a Fifa. A Adidas já servia à Fifa quando assumi a presidência. Ela fornece material esportivo e em troca ganha publicidade. O que o senhor Dassler fez foi permitir que a Fifa firmasse, em 1975, um contrato muito importante com a Coca-Cola para o patrocínio de algumas de nossas competições. Certa vez, um jornalista inglês perguntou qual era meu interesse nesse contrato. Eu respondi que era tomar um copo de Coca-Cola uma vez por ano.

Os patrocínios da ISL chegavam a 1 bilhão de dólares na minha gestão. Ela ganhou a concorrência porque ninguém apresentou proposta melhor. Tínhamos também contratos com a televisão americana, no valor de 500 milhões de dólares, outros 100 milhões da Adidas e mais 100 milhões da Coca-Cola. Tudo isso era exaustivamente discutido dentro da Fifa. Primeiro, na comissão de finanças. Depois, pelos 24 membros do comitê executivo. Todos os nossos contratos foram aprovados por unanimidade e depois examinados com minúcia por escritórios de advocacia. Só então eu assinava, não sem antes ler com a maior atenção. Eles eram redigidos em quatro idiomas: inglês, francês, espanhol e alemão. Alemão eu não falo, meu inglês não é forte, mas espanhol e francês eu conheço a fundo.

Não sou teimoso, sou é determinado. Perdi meu pai com 18 anos, comecei a trabalhar cedo e um dia decidi que nunca teria patrão. Venci todos os meus desafios. Quando jovem, fui atacado pelo tifo negro e fiquei 120 dias preso a uma cama. O médico chegou a preparar minha mãe para o pior, lembrando que, entre 1.000 vítimas da moléstia, uma se salva. Pois ainda estou vendendo saúde. Nado 1.500 metros por dia, tenho uma taxa de colesterol abaixo da média e os médicos constataram que minha próstata é a de um homem de 55 anos.

Meu pai é que era uma pessoa de sorte. Em 1912, ele comprou uma passagem para o Titanic. Atrasou-se e, quando chegou ao Porto de Southampton, não pôde embarcar: o navio tinha acabado de partir para sua primeira e última viagem. Isso sim é que é sorte. Minhas realizações não se devem à sorte. Devem-se ao trabalho.

Desde que a televisão passou a transmitir os jogos com regularidade, os estádios gigantescos deixaram de ser necessários. Mesmo no Brasil, por motivos de segurança, não existem mais acomodações para receber aquelas multidões de antigamente. Em minha opinião, o Maracanã deveria ser implodindo. Ele está superado. Em seu lugar, deveria erguer-se um novo, para no máximo 80.000 pessoas, com estacionamento, melhor utilização do espaço, segurança e conforto. Poderia ter hotel, supermercado, shopping center, o que permitiria sua utilização permanente. A idéia, aliás, não é minha. Fizeram exatamente isso com o velho estádio de Wembley, em Londres. Em seu lugar, ao custo de 200 milhões de dólares, foi construído um complexo moderníssimo.

Em 1985, o México sofreu um terremoto terrível, no qual morreram pelo menos 5.000 pessoas, mas no ano seguinte o país realizou uma maravilhosa Copa do Mundo.

Não era o meu desejo que a copa de 2002 tivessem duas sedes. Foi a decisão do comitê executivo da Fifa. Os dois países tinham diferenças consideráveis, como população, economia e número de cidades em condições de sediar a Copa. Eram doze no Japão e apenas duas na Coréia.

O que eu disse sobre a Lei Pelé é que os filiados à Fifa são obrigados a cumprir seus estatutos. Quem não se enquadra deve sair. Alguns aspectos do projeto se chocavam com aqueles estatutos, mas foram retirados.

Pelé foi o maior jogador do mundo, mas administrar é outra coisa. Desculpem mais uma vez a imodéstia, mas fui presidente da CBD e saí de lá com três títulos mundiais. Quando assumi a Fifa, ela não tinha nada. Hoje acho que é a maior organização do mundo, pelo que gera de emprego, de dinheiro e de alegria em todos os continentes.

Não havia razão para que eu convidasse Pelé pra cerimonia de sorteio da copa. Nós convidamos os representantes dos países finalistas e jogadores das novas gerações. O que eu tinha de fazer por ele eu fiz. Há alguns anos, quando seus contratos de publicidade estavam caindo, eu o levei a vários países para ajudá-lo. Deixe ele ficar no lugar dele que eu fico no meu.

* Por João Havelange, nascido em 1916, foi presidente da FIFA entre 1974 e 1998 e também foi presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD, a antiga CBF) entre 1958 e 1975. 

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